09 de maio de 2025

Propondo uma entrevista que reflita criticamente sobre o espaço ocupado pelos esportes na formação superior em Educação Física, entrevistamos o professor Ivan Wallan Tertuliano, pós-doutor em Desenvolvimento Humano e Tecnologias, mestre em Educação Física, Profissional de Educação Física (CREF 024313-G/SP), conselheiro do CREF4/SP, secretário de Relações Acadêmicas da Asemesp e professor na Universidade Anhembi Morumbi desde 2020.
A proposta é discutir desde a estrutura curricular até as demandas práticas do mercado, com foco na qualidade da formação esportiva nas instituições de ensino superior. O debate gira em torno da necessidade de reformular os currículos para equilibrar as dimensões técnica, científica e humana do esporte, rompendo com modelos tradicionais e aproximando o ensino da realidade social e profissional. Diversos estudos já analisam o deslocamento da centralidade do esporte para outras práticas corporais, como dança, fitness, saúde, lutas e lazer.
Apesar da origem esportiva dos cursos de Educação Física no Brasil, muitos estudiosos apontam que o espaço reservado aos esportes nas universidades tem diminuído. Para compreender esse fenômeno, é fundamental considerar o documento que regulamenta as matrizes curriculares das Instituições de Ensino Superior (IES): as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), instituídas pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), vinculada ao Ministério da Educação (MEC). A DCN de 2004, por exemplo, determinava, em seu artigo 4º, que “o curso de graduação em Educação Física deverá assegurar uma formação generalista, humanista e crítica, qualificadora da intervenção acadêmico-profissional, fundamentada no rigor científico, na reflexão filosófica e na conduta ética”. Esse direcionamento reforçava que a formação deveria ser ampla e não especializada em um único conteúdo, como o esporte.
Sem vivência prática consistente, é impossível compreender de forma profunda os processos de ensino-aprendizagem no esporte © Hay Dmitriy / Depositphotos
Essa diretriz foi posteriormente revogada pela Resolução nº 6, de 18 de dezembro de 2018, que reformulou a estrutura curricular. Diferentemente das diretrizes anteriores, que diferenciavam licenciatura e bacharelado desde o início, a nova DCN instituiu uma formação dividida em duas etapas: comum e específica. O estudante ingressa no curso de Educação Física sem definir, inicialmente, se seguirá para licenciatura ou bacharelado. Nos dois primeiros anos, cursa disciplinas comuns e, ao final do quarto semestre, escolhe sua trajetória. Esse modelo traz desafios para a elaboração dos currículos, pois une estudantes de licenciatura e bacharelado em uma mesma base curricular inicial.
Paralelamente, observa-se uma redução significativa na carga horária dos cursos de Educação Física. Antes, os cursos tinham, em média, cinco horas/aula diárias de aula, de segunda a sexta-feira, com atividades complementares aos sábados. Atualmente, muitas IES operam com apenas três horas/aula diárias, sendo até 40% do conteúdo ministrado no formato EaD, conforme permitido pelo MEC. Esse fator compromete a qualidade da formação, especialmente em cursos voltados para a área da saúde, onde a prática presencial é essencial. Há casos de cursos 100% EaD em que o estudante se forma sem nunca ter experienciado práticas pedagógicas presenciais — o que levanta o questionamento sobre a adequação de se formar profissionais sem vivência prática.
Esse cenário impacta diretamente a presença dos esportes nas matrizes curriculares. No caso da licenciatura, os artigos 15 e 16 da Resolução nº 6/2018 não incluem os esportes como conteúdo central, mas apenas como tema transversal, com ênfase no magistério e na educação básica. No bacharelado, o esporte aparece no artigo 20 como um eixo articulador da formação, abordando políticas esportivas, treinamento, gestão e implicações socioculturais e pedagógicas do esporte. Contudo, em ambos os casos, a formação deve ser generalista, o que limita o aprofundamento nos conteúdos esportivos.
Mesmo com espaço reduzido nos currículos, o esporte ainda é essencial na formação generalista do profissional de Educação Física © Davit85 / Depositphotos
Além disso, há uma mudança no perfil dos estudantes de Educação Física. Muitos ingressam na graduação focados exclusivamente no treinamento resistido e na musculação, demonstrando pouco interesse por conteúdos esportivos, sejam teóricos ou práticos.
Com base nesses fatores, o professor Ivan Tertuliano aponta quatro elementos que contribuem para a redução da presença dos esportes nos currículos:
1 – Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) – Que exigem das IES o cumprimento das diretrizes do MEC, e não do mercado — o que leva as instituições a priorizarem as exigências ministeriais para obter boas avaliações oficiais;
2 – Redução substancial da carga horária – A carga horária dos cursos de Educação Física sofreu, ao longo dos anos, uma redução substancial, o que contribuiu diretamente para a diminuição da quantidade de horas dedicadas aos conteúdos voltados para os esportes;
3 – Aumento da carga horária EaD – A introdução de até 40% do curso em EaD reduz significativamente as oportunidades de conteúdos práticos, de cunho formativo (pedagógico ou técnico), voltados exclusivamente para os esportes, que é essencial para uma formação sólida. Costumo dizer aos alunos uma máxima educacional que considero fundamental: você melhora sua prática no volante dirigindo — ou seja, é preciso dirigir um carro de verdade por mais tempo para ser um bom motorista;
4 – Falta de interesse dos próprios estudantes – Atualmente, os estudantes não demonstram interesse por conteúdos voltados ao esporte, mostram resistência às aulas de cunho prático e, em muitos casos, ingressam no ensino superior já com a intenção de atuar exclusivamente com treinamento resistido após a formação.
Ensinar esporte é cultivar o potencial humano — e isso exige presença, paixão e preparo para transformar movimento em educação © Davit85 / Depositphotos
A formação esportiva exige mais do que a prática: ela envolve bases científicas, pedagógicas e metodológicas. Contudo, segundo o professor Ivan Tertuliano, o maior obstáculo para a consolidação dessa articulação não é a fragmentação entre teoria e prática, mas sim a combinação de fatores como a baixa carga horária dos cursos, o modelo generalista imposto pelo MEC e a elevada porcentagem de disciplinas oferecidas em EaD. Com menos tempo presencial e menor aprofundamento, a formação esportiva acaba comprometida
“O excesso de precocidade em definir uma área de atuação específica pode comprometer a formação e limitar as possibilidades profissionais dos recém-formados.”
“A atual carga horária de 3.200 horas é insuficiente para preparar profissionais aptos a atuar de maneira plena no campo esportivo, seja no treinamento, no ensino ou na gestão. Anteriormente, os cursos superiores em Educação Física chegavam a ultrapassar as 4.500 horas, permitindo uma formação mais robusta. Além disso, o mercado esportivo é mais restrito em comparação ao universo do fitness e do treinamento resistido, o que leva muitos alunos a optarem por essas áreas em busca de melhores oportunidades profissionais.”
No entanto, Ivan Tertuliano propõe uma reflexão importante: a especialização em áreas como o esporte ou o fitness não deveria ser pensada no nível da graduação, mas sim como parte do percurso da pós-graduação. Para ele, a graduação generalista não é um problema — ao contrário, é essa formação abrangente que oferece ao egresso as condições mínimas para ingressar em um mercado de trabalho também generalista. O excesso de precocidade em definir uma área de atuação específica pode comprometer a formação e limitar as possibilidades profissionais dos recém-formados.
Discutir mudanças no modelo de formação e atuação dos profissionais de Educação Física exige atenção aos múltiplos desafios estruturais, legais e institucionais. A ideia de implementar especializações ou “clusters” ainda na graduação pode parecer atraente, mas esbarra em diversas limitações práticas. Em primeiro lugar, muitos estudantes ingressam na universidade sem saber com clareza em qual área desejam atuar. Forçá-los a uma escolha prematura pode restringir suas oportunidades e formação. Além disso, a realidade do mercado raramente corresponde às expectativas acadêmicas: é comum que profissionais precisem atuar em diferentes áreas para garantir sua subsistência, especialmente em cidades menores, onde a demanda é mais pulverizada.
Do ponto de vista institucional, as Instituições de Ensino Superior não têm autonomia plena para redesenhar seus currículos. Qualquer alteração relevante precisa estar em conformidade com o Catálogo Nacional de Cursos Superiores do MEC. Modificações estruturais, como a criação de “clusters” de formação, exigiriam revisões nos Projetos Pedagógicos de Curso, novos códigos de autorização junto ao MEC e o enfrentamento de um processo burocrático longo, oneroso e incerto. A questão que se impõe, então, é: estariam as IES dispostas a enfrentar todo esse trâmite para atender às demandas pontuais do mercado?
Por fim, é fundamental considerar a Lei nº 9.696/98, que regulamenta a profissão de Educação Física no Brasil. Qualquer tentativa de reestruturação da formação que desconsidere esse marco legal pode abrir espaço para a atuação de profissionais vinculados a confederações esportivas e regidos apenas pela Lei Geral do Esporte, o que colocaria em risco os avanços obtidos com a regulamentação da profissão. Diante de tudo isso, é preciso pesar os prós e contras de qualquer mudança. O debate é necessário, mas não pode ser conduzido de forma precipitada ou descolada da realidade institucional, legal e mercadológica. Mais do que nunca, o momento exige reflexão estratégica e diálogo qualificado.
Esperar um profissional sênior ao fim da graduação é ignorar o tempo necessário para maturar competências complexas, como o ensino da prática esportiva © Zigic Drazen / Depositphotos
“Pesquisadores como Darido, Scaglia e Reverdito apontam uma lacuna na abordagem pedagógica do esporte, especialmente nas faixas etárias iniciais, indicando que a iniciação esportiva ainda carece de maior respaldo metodológico nos cursos de formação. Segundo o professor Ivan Tertuliano, os cursos superiores até oferecem conteúdos relacionados à pedagogia do esporte, mas a limitação da carga horária compromete a profundidade desse ensino. Considerando que 30% das 3.200 horas previstas nos cursos são destinadas a atividades extensionistas (10%) e estágios obrigatórios (20%), sobram apenas 2.240 horas para contemplar todo o conteúdo previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais, incluindo os esportes. Dessa forma, a formação dos futuros professores e treinadores para atuar com crianças e jovens fica bastante comprometida.”
Ivan recorre ao conceito de prática deliberada proposto por Anders Ericsson, que sugere que seriam necessárias cerca de 10.000 horas de treino estruturado, com feedback constante e foco no aperfeiçoamento, para alcançar excelência em uma habilidade complexa. No contexto da formação esportiva, essa lógica se aplica à necessidade de maior tempo de exposição a conteúdos práticos e pedagógicos específicos, permitindo uma compreensão mais sólida dos processos de ensino-aprendizagem no esporte.
Diante desse cenário, o professor defende que mudanças nas Diretrizes Curriculares Nacionais são urgentes para garantir uma formação mais sólida, crítica e alinhada às necessidades da sociedade. Entre as alterações consideradas prioritárias, ele destaca o aumento da carga horária total dos cursos, a redução do percentual de carga horária permitida em EaD e uma maior ênfase nos conteúdos esportivos dentro das próprias DCNs.
Ao reduzirem carga horária, ampliarem o EaD e ignorarem as demandas do mercado, muitas IES fragilizam a formação esportiva e formam profissionais sem a vivência mínima necessária © Matimix / Depositphotos
Antes de promover essas alterações, porém, Ivan enfatiza a importância de refletir cuidadosamente sobre o que se espera de um egresso que está ingressando no mercado. Ele lembra que o mercado, muitas vezes, deseja receber um profissional sênior recém-saído da universidade, mas a realidade é que a instituição de ensino entrega um profissional júnior. Essa distinção é fundamental para evitar distorções nas expectativas e frustrações tanto para o recém-formado quanto para os contratantes.
“É compreensível que o mercado de trabalho, cada vez mais competitivo, busque profissionais com alta performance e autonomia desde o primeiro dia. No entanto, é necessário refletir com seriedade sobre o papel da universidade no processo de desenvolvimento profissional. O egresso carrega consigo conhecimento teórico, algumas vivências práticas e uma base ética consistente, mas ainda não possui a maturidade técnica que define um profissional sênior — algo que só é construído com tempo, prática, enfrentamento de desafios reais e constante atualização”, disse.
Empresas que compreendem as diferentes etapas de desenvolvimento profissional — estagiário, júnior, pleno e sênior — demonstram maior sensibilidade e responsabilidade para com a formação. Esses ambientes de trabalho tendem a ser mais justos e sustentáveis. Um profissional sênior é resultado de anos de mercado, de estudo contínuo e de experiências acumuladas. Não se forma um sênior em quatro anos de graduação, tampouco em cursos tecnólogos de duração mais curta.
Reconstruir o espaço do esporte na formação em Educação Física é mais que urgente — é um compromisso com a qualidade e a ética profissional © Depositphotos
Segundo Tertuliano, há um erro recorrente na tentativa de encontrar profissionais sêniores pelo preço de estagiários, o que revela uma incompreensão das etapas da carreira e uma distorção das expectativas. Ele questiona: onde estão os planos de carreira bem definidos dentro das organizações? Onde estão as descrições claras de competências, escopos de atuação e faixas salariais para cada nível profissional? Sem essas diretrizes, as exigências do mercado tornam-se imprecisas, descoladas da realidade e, por vezes, inviáveis.
“Há, portanto, muito a ser construído — e essa construção precisa priorizar a dignidade, a valorização e a evolução dos profissionais de Educação Física, acima das conveniências de um mercado que nem sempre compreende, ou respeita, os tempos e processos formativos”, concluiu.
Diante de tantos desafios, a missão que se impõe à formação em Educação Física não é simples, mas é absolutamente possível. Cabe às instituições de ensino, aos órgãos reguladores e ao próprio mercado repensarem suas posturas para que deixem de atuar como polos de cobrança isolada e passem a compor uma engrenagem de responsabilidade compartilhada. A construção de uma formação sólida, ética e conectada com as reais demandas da sociedade exige diálogo contínuo, coragem para revisar modelos obsoletos e disposição para investir na qualidade do processo formativo.
Mais do que formar especialistas precoces, é preciso formar pensadores do movimento humano: profissionais que compreendam o esporte como fenômeno social, educacional e de saúde; que saibam ensinar com intencionalidade, treinar com ética e intervir com base científica. Para isso, é necessário garantir tempo, espaço e conteúdo — com metodologias ativas, práticas supervisionadas e um currículo que respeite tanto a complexidade do conhecimento quanto a singularidade do estudante.
Se o futuro é incerto, o compromisso com ele deve ser claro. O desafio está posto, mas também a oportunidade: reconstruir a formação em Educação Física sobre pilares mais humanos, técnicos e justos. Nesse caminho, ganha o estudante, ganha o profissional e ganha, sobretudo, a sociedade.