Educação Física e gênero: desconstruindo padrões

A ausência de discussões sobre o tema, ou a omissão, podem reforçar a imposição de padrões, preconceitos e desigualdades entre os gêneros © Anastasiya Pavlova / Unsplash

É necessário que as aulas de Educação Física trabalhem em prol da superação de estereótipos classificatórios relacionados às questões de gênero, concebidos erroneamente pelo binômio masculino/feminino, seja qual for a atividade desenvolvida

Por Hudson Fabricius Peres Nunes
27 de outubro de 2020 / Curitiba (PR)

O cotidiano escolar é permeado de situações conflitantes sobre questões de gênero. Professores (as) da educação básica, principalmente do componente curricular de Educação Física, deparam-se com essa realidade e sabem da importância do tema; na maioria das vezes, desenvolvem trabalhos que exploram metodologia de ensino, coeducação, mecanismos de inclusão, exclusão e autoexclusão, inserção feminina no esporte, mídia esportiva e representações de gênero, identidades de gênero e estereótipos nas práticas corporais, entre outros.

Por outro lado, a ausência de discussões sobre o tema e/ou a omissão podem reforçar a imposição de padrões, preconceitos e desigualdades entre os gêneros. O discurso equivocado de diversas camadas da sociedade – como grupos políticos, religiosos e conservadores – apoia-se somente na lógica biológica, binária (homem/mulher) e conservadora de gênero (cisgênero: identidade de gênero de acordo com o sexo biológico). Ao defender essa ideia, esses grupos criaram muitas polêmicas e embates sobre a compreensão das questões de gênero e de como o ambiente educacional deve abordar o assunto, acarretando, por exemplo, retrocessos na elaboração de políticas públicas educacionais (Base Nacional Comum Curricular – BNCC), como a não indicação da relevância de trabalhar questões relacionadas aos gêneros.

Desconstruir a imposição de padrões de gênero torna-se tema importante para ser discutido nas aulas de Educação Física © Kelly Sikkema / Unsplash

A BNCC, aprovada em 2017, é um documento oficial que orienta e serve de parâmetro para organização curricular e seleção de conteúdos de Estados e municípios e, embora seja uma diretriz, a ausência conceitual da marcação social dá forças contrárias, já que não existe esta menção. Apesar desse retrocesso no documento oficial, há uma tendência de intensificação do movimento feminista em articular-se com outros grupos sociais – chamados de minorias – para confrontar estereótipos que determinam os papéis sociais, a representatividade e as políticas inclusivas, reivindicando condições equivalentes em diferentes cenários e setores sociais.

Mesmo sem destacar a importância das questões de orientação sexual e identidade de gênero na BNCC, a escola continua sendo espaço social que tem entre as suas diversas funções combater o negacionismo, ampliar o conhecimento, humanizar as relações sociais e valorizar a vida e as identidades dos alunos. Nesse sentido, as aulas de Educação Física potencializam a compreensão sobre as questões de gênero ao abordar diferentes conteúdos, como jogos, esportes, ginásticas, lutas, danças, entre outros, tratando como premissas conceitos democráticos, plurais e multiculturais.

No entanto, na perspectiva cultural e pós-estruturalista, de acordo com Butler (2003), Louro (1997) e Scott (1995), gênero não é determinado por fatores econômicos: as construções de gênero são diversas e plurais, fazem parte das identidades das pessoas e transcendem os papéis que homens e mulheres devem desempenhar na sociedade. A construção de gênero é situada historicamente e depende dos valores com que determinada sociedade se identifica e se relaciona. Essa construção envolve relações de poder, influências políticas e dominações ideológicas integradas ao modo pelo qual essa sociedade produz ou reproduz conhecimento, saber e cultura.

Essas construções emergem na escola e evidenciam-se durante as aulas de Educação Física, independentemente das práticas corporais, pois é impossível, separá-las de valores culturais, de sentimentos e das expressividades, que se transformam em códigos e/ou significados.

Na prática, as (os) alunas (os) classificam determinados conteúdos, em muitos casos, como atividades masculinas ou femininas. Como exemplos clássicos: futebol e lutas são para homens; ginástica e dança, para mulheres. Homens são mais fortes e habilidosos; mulheres, mais fracas e flexíveis. Certos brinquedos são de meninos ou de meninas, entre outras ideias que associam determinados tipos de movimentos, de forma equivocada, a estereótipos de masculinidade ou feminilidade, ou seja, de papéis desempenhados. Dependendo da faixa etária e de como ocorreu a socialização com o tema ao longo da escolarização, somadas ao bombardeio familiar, midiático e mercadológico, tais representações podem estar mais enraizadas. Por isso, desmistificar questões históricas, culturais, políticas, econômicas e outros determinantes que influenciam o corpo generificado é desafio permanente que as (os) professoras (es) terão que enfrentar no ambiente escolar.

O trabalho para desconstruir esses padrões envolve inicialmente o mapeamento e a problematização das questões de gênero, conforme cada realidade escolar, fundamentado em planejamentos disciplinares, inter ou transdisciplinares. Nesse sentido, é necessário que as aulas de Educação Física trabalhem em prol da superação de estereótipos classificatórios relacionados às questões de gênero, concebidos erroneamente pelo binômio masculino/feminino seja qual for a atividade desenvolvida.

Outro aspecto importante vai além da superação biologicista, pois entre o gênero masculino e o feminino (heterossexual), de acordo com Anne Fausto-Sterling (2000), existe outro, chamado de intersexual (pessoas nascidas com diferentes combinações anatômicas de órgãos genitais). Esses casos não são aceitos socialmente e acabam sendo legitimados pela intervenção da medicina, que definirá qual órgão sexual prevalecerá.

Por outra ótica, além da biológica, observa-se a existência de diferentes possibilidades de combinações que envolvem o sexo biológico, a orientação sexual e a construção de gênero. Nessa perspectiva, denota-se que a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas são distintas e plurais. Uma escola democrática e laica deve acolher, incluir e respeitar a individualidade das pessoas que fazem parte da comunidade escolar e, ao mesmo tempo, essa comunidade deve refletir a importância dessa humanização em outros espaços sociais.

Portanto, desconstruir a imposição de padrões de gênero torna-se tema importante para ser discutido nas aulas de Educação Física. Como propostas, sugere-se trabalhar com as questões de gênero que envolvam discussões e reflexões acerca da violência homofóbica e/ou transfóbica no esporte e na sociedade, casos de atletas transgênero e seus desdobramentos (desempenho e questões socioculturais) e aspectos relacionados com as estruturas de poder.

Hudson Fabricius Peres Nunes é professor de Educação Física na Unesp e doutorando em Ciências da Motricidade na IFSP – Campus Votuporanga

Referências
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
LOURO, G. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro; Petrópolis: Vozes, 1997.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-100, jul./dez. 1995.
FAUSTO-STERLING, A. Dualismo em duelo. Cadernos Pagu, p.9-79, 2001/02.