Chega de captação. É preciso formar jovens talentos em todos os sentidos

O futebol tem sim o potencial de ajudar a mudar o País © Divulgação

Crianças e jovens talentosos que ainda em tenra idade entram no “mercado da bola” precisam ser protegidos para não se transformarem em mercadoria nas mãos de quem só enxerga o lucro

Por Arthur Sales Pinto
18 de outubro de 2020 / São Paulo (SP)

Imagine um menino de 7 anos viajando pelo País. Ele foi convidado por alguns dos maiores clubes de futebol do Brasil para participar de avaliações, pois aparentemente estão interessados em seu talento. Se aprovado, o garoto dará o primeiro grande passo para aproximar-se do sonho — de quem? — de se tornar um jogador profissional. Enquanto vai tentando a sorte, o menino perde uma, duas, três semanas de escola, mas e daí? Dá para recuperar depois. Quem vai falar não para Flamengo, Corinthians, Atlético ou Internacional? Segue assim o garimpo do futebol brasileiro, aprovando poucos, descartando muitos e criando um exército de andarilhos mirins.

O ideal seria que os clubes concentrassem esforços em dar oportunidade para que as crianças se desenvolvam em suas cidades © Divulgação

Esse exército pode chegar a centenas de milhares, ninguém sabe ao certo. Quem tenta no Palmeiras também bate à porta do Juventus, até parar em projetos nos quais precisa pagar para jogar ou viver em alojamentos que lembram mais uma granja do que um local onde dormem crianças.

Até os clubes mais reconhecidos por seu trabalho nas categorias de base no Brasil apostam suas fichas na captação — o garimpo — de jogadores. O objetivo é encontrar os melhores o mais cedo possível, de preferência antes dos rivais. Assusta a visão de muitos profissionais voltados a esse trabalho. Argumentam que reunindo apenas crianças da própria cidade o nível das equipes seria muito mais baixo. Eles até têm razão quando dizem que as crianças estão sem tempo e espaço para brincar, que não é possível mais ficar tanto tempo nas ruas, que os carros e a violência atrapalham, que os celulares são um concorrente e tanto. Diante de tantos obstáculos, é mais cômodo selecionar quem já chega “pronto” — lembrando que estamos falando aqui de crianças de 8 e 9 anos —, mas esse não é o único caminho. É possível desenvolver os melhores jogadores.

Como argumentar que não há material humano suficiente em São Paulo, no Rio, Brasília, Salvador, Fortaleza ou Belo Horizonte? Cada uma dessas cidades tem quase tanta gente, ou mais, quanto o Uruguai! Em cada capital brasileira, há ao menos tanta gente quanto na Islândia! E se o futebol islandês foi bom e organizado o suficiente para manter e proporcionar o desenvolvimento de seu melhor jogador — o meia Gilfy Sigurdsson — até os 16 anos, por que isso não pode acontecer em Estados com menos tradição futebolística, como o Acre ou o Mato Grosso?

Defender que o nível dos jogadores de uma equipe formada apenas por crianças da própria cidade seria ruim é esquecer de duas coisas. Primeiro, a hora de ganhar não é no sub-9. Segundo, o responsável por fazer uma equipe forte e por melhorar o nível de jogo do menino é justamente quem está reclamando de sua qualidade. Se há dificuldades, a solução é enfrentá-las; se o repertório motor das crianças já não é o mesmo, que o trabalho nas escolas de futebol e, posteriormente, nas categorias de base propicie seu enriquecimento.

É possível fazer diferente, desde que haja interesse e boa vontade © Divulgação

O futebol tem sim o potencial de ajudar a mudar o País, mas, no momento, não atrapalhar já estaria de bom tamanho. É preciso abrir mão do modelo de captação e apostar de verdade no desenvolvimento e no fomento. Em vez de reduzir a idade da formação, como muitos defendem, e alojar jovens de diferentes partes do País cada vez mais cedo, estimulando um “mercado de crianças” que prejudica milhares, o ideal seria que clubes e federações concentrassem seus esforços em dar oportunidade para que crianças e jovens se desenvolvam em suas cidades natais. Quer dispor de um número maior de jovens? Simples: é só estabelecer filiais, clubes ou escolas de futebol onde interessar, trabalhando com crianças, formando os seres humanos que futuramente poderão integrar os elencos da base, mas sem queimar etapas. É possível fazer diferente!

Se aos 14 ou 16 anos os jogadores estão piores do que há 20 ou 30 anos — será que estão? —, quem está garimpando, e não cultivando, tem a sua parcela de responsabilidade e deve, urgentemente, repensar esse processo!

Arthur Sales Pinto é jornalista e mestre em ciências da motricidade
pela Unesp. Atua desde 2014 com temas relacionados aos
direitos de crianças e adolescentes no futebol.