O dilema da formação profissional e o judô: a nostalgia do mestre

O professor e árbitro Newton César Vomero orienta um jovem praticante durante a competição

O modelo artesanal é considerado o mais antigo meio de ensino-aprendizagem que a sociedade humana criou

Por Dr. Me. Alexandre Janotta Drigo
18 de novembro de 2020 / Curitiba (PR)

O judô, durante seu desenvolvimento no Brasil, apresentou características que perduraram durante quase um século, desde a imigração japonesa que aportou em Santos em 1908 no navio Kassato Maru até meados dos anos 1980 e 90. O funcionamento, a lógica interna do judô, apresentava-se no que considero modelo artesanal de ensino ou de prática do judô.

As atividades práticas têm como objetivo a formação do caráter do aprendiz, da mesma forma que os estudos formais (escolares) formam o indivíduo

Considerar artesanal a estrutura do ensino, baseada nas escolas de ofício da Idade Média, de forma nenhuma desmerece o modelo ou põe limites à sua eficiência ou ao seu desempenho, pois não foi o judô fundamentalmente que mudou, mas sim a sociedade na qual está inserido. O modelo artesanal é considerado o mais antigo meio de ensino-aprendizagem que a sociedade humana criou. Desde que um pai ensinou seu filho a pescar ou caçar este modelo foi configurado, incluindo posteriormente a própria terminologia de mestre. Desta forma, as características principais deste modelo são:

  • A presença do mestre como figura central e molde de aprendizagem.
  • Todo ou quase todo o aprendizado é prático, por meio do treinamento, até o aprendiz alcançar certo domínio ou competência técnica.
  • As atividades práticas têm como objetivo a formação do caráter do aprendiz, da mesma forma que os estudos formais (escolares) formam o indivíduo.

Esta forma de pedagogia faz ponte com a tradição do ensino de pai para filho, porém com uma estrutura mais evoluída, tendo sido descrita por vários autores, como Rugiu (1998) e Cunha (2000). Eles apresentam em seus estudos referências do artesanato da Europa medieval que, por estrutura, assemelha-se ao que presenciei na minha vivência com o judô. Outras semelhanças entre o modelo artesanal (medieval) e a estrutura do judô podem ser percebidas, como a oficina onde se aprendia o ofício em atividades práticas, a exemplo das academias; as entidades diretoras do ensino e do controle da atividade (as corporações de ofício), semelhantes às nossas federações; e o exame prático para ser considerado artesão sob a supervisão de bancas específicas de mestres, assim como ocorre atualmente nos exames de faixa preta, realizados, em ambos os casos, em evento específico na capital correspondente.

Pode-se dizer que esta época apresentava sua complexidade, porém possuía um objetivo simples e claro de ensino, fundamentado no desenvolvimento do praticante desde a faixa branca até a faixa preta. Todo o contexto do ensino girava em torno disto e as atividades correlatas à prática, como as competições, eram testes de confirmação do aprendizado e domínio técnico. Geralmente, isso era avaliado pela lógica: quem se dedicou mais tem melhor desempenho, lembrando que era prioritário o gesto técnico.

Neste sentido, evidencia-se que as mudanças no nível de complexidade da sociedade podem ser elucidadas a partir de diferentes perspectivas:

  1. Biológicas – O crescimento do conhecimento biológico insere conceitos de diferenciação no entendimento da fisiologia humana e cria divisões de elementos, separando individualidades biológicas em relação a idade e sexo. Também influencia o desenvolvimento de teorias de bioenergética, comportamento motor, crescimento e desenvolvimento.
  2. Comportamentais – Advindos dos conhecimentos de psicologia e das mudanças do mundo moderno, representadas pelas normas de consumo e políticas educacionais, entre outras.
  3. Tecnológicas – Relacionadas ao treinamento nos aspectos da iniciação, especialização inicial, especialização profunda e treinamento de alto nível. E, de forma crucial, o avanço das tecnologias da informação (TIs), que, facilitando o acesso a qualquer informação disponível, acabou por transformar os comportamentos de ordem social. Isso ocorre principalmente no que diz respeito ao entendimento dos direitos civis, sendo o esporte disseminado enquanto direito do cidadão nas suas múltiplas configurações, e não apenas enquanto direito do desportista de alto rendimento.
  4. Social/legislativa – Tem base na regulamentação profissional da prática de educação física e legislações intervenientes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código de Defesa do Consumidor, e transformações de ordem social, principalmente em relação à necessidade de formação de nível superior para atuar com esporte.

Todas estas transformações determinaram alterações na forma como o judô está expresso na sociedade, pois se instalaram de forma sutil e gradual, de forma que nos adaptamos a elas, uma vez que fazemos parte do processo. Podemos evidenciar este fato, por exemplo, ao olhar para as academias de judô de 20 anos atrás, como já citado: elas possuíam os tatamis e acessórios (alguns aparelhos para musculação, geralmente), mas eram primordialmente um espaço para a prática do judô. Hoje, este tipo de espaço está em extinção. Atualmente, no Estado de São Paulo, há uma minoria de locais que apresentam esta característica. O mercado das lutas em geral, e consequentemente do judô, deslocou-se para os clubes e prefeituras ou academias com múltiplas atividades, em que se incluem lutas. Da mesma forma, assistimos à inserção do judô em projetos sociais, em atividades de saúde vinculadas a hospitais e programas do SUS e em espaços educacionais como escolas e faculdades.

O exame prático para conquista de maior graduação é realizado diante das bancas examinadoras

Neste sentido, percebe-se que os objetivos se modificaram do quadro inicial que foi apresentado, uma vez que em cada um destes espaços contemporâneos tem-se uma especificidade, acarretando também uma alteração da lógica artesã, pois não há mais a figura definida do mestre nem da academia enquanto oficina. Assim como o mestre artesão europeu se rendeu ao avanço industrial, nos últimos tempos o mestre de judô tornou-se refém de contratos e concursos para sua sobrevivência. E, dependendo do local em que a modalidade funciona, vários professores fazem parte da formação do judoca, dividindo-se as funções entre instrutores que cuidam de iniciações e técnicos especializados.

Neste texto aponto que a complexidade da sociedade gera diferenças na formação para o trabalho, dirigindo as práticas artesanais para uma eminente profissionalização. Assim, o domínio técnico artesanal pode não ser mais suficiente para dar conta desta nova realidade. No caso das lutas, a demanda de profissionais passa por um período de transição, para o qual acredito que estamos no fim de uma fase. Portanto, é imprescindível o planejamento para o futuro.

Considero importante que iniciemos políticas de incentivo a cursos superiores com propostas curriculares, cursos de extensão e especialização e pesquisas que venham suprir as necessidades profissionais do trabalho com judô. Desta forma, pondero sobre os cursos de educação física como legalmente instituídos para formação de profissionais do esporte e das práticas corporais, devendo-se focar esforços para que estes cursos auxiliem nesta meta. Por outro lado, considerando o momento de transição, devem ser tomados os devidos cuidados para que a essência do judô, expressa nos ensinamentos de Jigoro Kano, não se percam, se alterem ou se contaminem.

Alexandre Janotta Drigo é bacharel em biologia e educação física (EF);
mestre em ciências da motricidade pela Unesp/RC; doutor em EF pela Unicamp
e orientador da pós-graduação em ciências da motricidade da Unesp. Pesquisa formação
profissional em EF, atividade física e saúde, lutas e metodologia do treinamento.
Membro do Conselho Federal de Educação Física, tem 66 artigos científicos publicados
no Brasil e no exterior, dez livros e 22 capítulos, entre outras produções.
É coordenador da comissão científica da FPJudô.
Referências
CUNHA, L. A. – O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata.
São Paulo: Editora UNESP, Brasília, DF: Flacso, 2000.
RUGIU, A. S. – Nostalgia do mestre artesão. 1ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.