O judô como esporte de participação, bem-estar e convivência social

É possível repensar o ensino e a prática do judô focando a saúde e ao bem-estar dos praticantes © Budopress

As entidades diretivas podem criar mecanismos que estimulem a prática da modalidade em suas amplas dimensões, e não apenas em sua vertente competitiva

Por NEPEF
14 de novembro de 2020 / Curitiba (PR)

Ao escrever sobre o tema Judô infantil: repensando a competição, na edição de número 5 da revista Budô, abordamos um tema polêmico e pouco discutido em nosso meio, ao menos de forma sistemática e científica.

O texto, analisando a prática e o ensino do judô na atual realidade brasileira, identifica e aponta outros tópicos que julgamos importantes e mereceriam um aprofundamento em textos futuros. E um deles era o judô como esporte de participação, bem-estar e convivência social.

Parece-nos evidente que a vertente competitiva do judô tem grande predominância no espaço cultural que a modalidade ocupa, no que diz respeito aos elementos motivadores da sua prática na atual realidade brasileira. Entretanto, esta não é a única vertente que o judô assume perante infinitas possibilidades que ele contém. Algumas, inclusive, deixam bem enfatizados e implícitos os princípios e propósitos do seu idealizador, professor Jigoro Kano.

As crianças e adolescentes que se destacam entre os vencedores são altamente estimulados, pois as conquistas retroalimentam seu interesse pelo esporte © Budopress

A própria atuação profissional que advém do trabalho com o judô deixa claro que, sendo professor ou treinador da modalidade, precisamos de alunos ou atletas para garantir nosso sustento e ter uma remuneração condigna em qualquer setor, seja em academias seja em clubes, colégios, prefeituras e outros. Dentre vários, este é mais um motivo significativo que nos faz crer que pensar única e exclusivamente na vertente do judô competitivo é limitar-se profissionalmente em relação às possibilidades que a prática nos pode proporcionar.

Para compreendermos melhor o raciocínio que queremos propor, faz-se importante refletirmos e tomarmos consciência da diferença entre participação esportiva e a competição esportiva de alto desempenho. Para melhor divisão em termos de estudos e otimização nas ações públicas ou privadas no campo desportivo em nosso País, a lei federal 9.615/98 resolveu denominar a primeira situação de Esporte de Participação e a segunda, de Esporte de Alto Rendimento.

Pensando nas conquistas do Esporte de Alto Rendimento é inegável o prestígio que ele proporciona aos vitoriosos, divulgando o nome das academias, clubes e outras entidades, promovendo a ascensão e a inserção profissional no mercado de trabalho dos técnicos e demais profissionais envolvidos na preparação dos atletas campeões. Certamente, tais elementos são parte importante no processo de predominância da vertente competitiva do judô.

Entretanto, ao olhar por outro ângulo, no reverso da moeda, vemos que os títulos e as competições importantes, que dão status ao atleta, não mudam numericamente. Sempre haverá apenas um campeão estadual, um campeão nacional e um atleta principal da seleção brasileira por categoria. Este número é inflexível e imutável, pois, a não ser que novas ligas e federações sejam criadas, o que não vem ao caso, são competições ou torneios excludentes, selecionando-se o melhor. Desta forma, selecionar os melhores e treiná-los adequadamente incide sobre a necessidade de escolher apenas um por categoria, o que implica número restrito de atletas em condições de lutar por este espaço tão limitado.

Com a evolução geral de todas as variáveis que envolvem o atual cenário do Esporte de Alto Rendimento, em tal nível de competição, praticamente fecharam-se as possibilidades de participação dos chamados atletas amadores.

Tendo em vista que a prática do judô no Brasil, culturalmente, esteve bastante ligada às chamadas academias associativas com foco na prática da modalidade e nas chamadas escolinhas esportivas de iniciativa pública, a situação aqui descrita resulta na dificuldade de essas entidades manterem um atleta adulto de alto rendimento. Não só de caráter financeiro, mas também devido a particularidades inerentes às necessidades de um trabalho altamente seletivo e especializado.

Assim, observamos que tal nível de rendimento fica restrito praticamente a alguns clubes que podem pagar salários aos atletas que compõem as suas equipes de competição. Às academias e escolinhas sobram as disputas das medalhas e títulos entre crianças e adolescentes. A lógica, porém, continua a mesma: haverá apenas um campeão ou título por categoria. Isso é evidente, mas, se aprofundarmos a reflexão, pensamos ser importante considerar dois fatores:

  • As crianças e adolescentes que se destacam entre os vencedores são altamente estimulados, pois as conquistas retroalimentam seu interesse pelo esporte;
  • Quanto àqueles que não se destacam entre os campeões que, aliás, são a grande maioria, tendem a ter um estímulo menos evidenciado, o que irá diminuir o interesse pela prática, se resumida apenas à competição.
  • No campo do Esporte de Participação, o profissional do ensino e da prática do judô deve considerar os diferentes personagens da vida cotidiana, não apenas o competidor ou, ainda, o campeão © Budopress

A fórmula é simples: se o investimento se direciona a um aspecto único – no caso a competição –, os resultados orientam o interesse ou não pela continuidade na modalidade. Daí, talvez, a grande rotatividade observada nas faixas etárias de crianças e adolescentes na prática do judô.

Voltando a pensar no mercado de trabalho e na manutenção financeira dos professores e das academias, podemos pensar a prática do judô também pelo seu lado de Esporte de Participação. Dentro dessa proposta, consideramos a importância de um olhar menos restritivo e mais abrangente para o trabalho do ensino e da prática do judô.

No campo do Esporte de Participação, o profissional do ensino e da prática do judô deve considerar os diferentes personagens da vida cotidiana, não apenas o competidor ou, ainda, o campeão.

Nesse mesmo aspecto, as entidades diretivas do judô, podem criar mecanismos que estimulem a prática da modalidade em suas amplas dimensões, e não só na sua vertente competitiva.

Um ponto que consideramos significativo no sentido de repensar o direcionamento do trabalho do ensino e da prática do judô está vinculado à saúde e ao bem-estar dos praticantes.

Como exemplo, podemos citar as propostas dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs) e do projeto de promoção de saúde para mulheres portadoras de osteopenia e/ou osteoporose do município de Tucuruí (Pará) descrito por Borba-Pinheiro e colaboradores (2010).

Os NASFs foram criados por meio da Portaria 154, de janeiro de 2008, que faz a seguinte referência à Política Nacional de Promoção da Saúde:

A Política Nacional de Promoção da Saúde – PT nº 687/GM, de 30 de março de 2006 -, compreende que as Práticas Corporais são expressões individuais e coletivas do movimento corporal advindo do conhecimento e da experiência em torno do jogo, da dança, do esporte, da luta, da ginástica. São possibilidades de organização, escolhas nos modos de relacionar-se com o corpo e de movimentar-se, que sejam compreendidas como benéficas à saúde. (BRASIL, 2008, grifo nosso).

Bem, o interessante da referência sobre os NASFs está no fato de incluir as lutas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim sendo, torna-se possível o financiamento da própria Secretaria da Saúde para atividades de assistência à saúde da família que possam conter, por exemplo, o judô como uma de suas práticas alternativas.

Entretanto, ficam aqui alguns questionamentos:

  • Dentro dessa visão predominantemente esportivista que observamos no campo de trabalho de ensino e da prática do judô na atualidade, estariam os profissionais capacitados tecnicamente para trabalhar neste seguimento?
  • Temos condições de adaptar o judô para trabalhar nesta vertente?
  • O judô não deve preocupar-se com essa fatia do mercado?

Apesar dessas questões, vemos profissionais que já começam a trabalhar com o judô focando a saúde e o bem-estar, abrindo assim novas possibilidades de atuação no ensino e na prática da modalidade.

Borba-Pinheiro, em 2010, apresentou a proposta de trabalhar com judô para um grupo de senhoras com baixa densidade mineral óssea ou osteoporose que nunca tinham praticado a modalidade e que, mediante adaptação das atividades específicas, conseguiu que essas mulheres se interessassem e praticassem o esporte. Como resultado, ele alcançou, numa associação com medicamentos – prescrito por médicos –, melhora significativa na absorção mineral óssea das praticantes, amenizando o quadro de osteoporose e, consequentemente, melhorando a qualidade de vida delas.

Consideramos a importância de um olhar menos restritivo e mais abrangente para o trabalho do ensino e da prática do judô © Budopress

O interessante dos estudos de Borba-Pinheiro é que, apesar da atividade de musculação ter proporcionado resultado ligeiramente melhor, o judô teve aceitação muito mais estimulante e, em alguns segmentos ósseos, como no quadril, por exemplo, a absorção de cálcio superou a da musculação.

Este procedimento foi pioneiro no Brasil e no mundo, pois alguns trabalhos com judocas idosos buscando saúde, dos quais temos conhecimento, estão sendo realizados no Japão, porém, com ex-atletas e ex-praticantes que envelheceram na modalidade.

O resultado deste trabalho inspirou ao professor Cláudio Joaquim Borba (3° dan) vários artigos nacionais e internacionais sobre o assunto, além de dissertações de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Novas vertentes sempre se apresentam e, quanto mais nos abrirmos para elas, mais possibilidades de amplitude da prática de judô podem surgir. Lembramos que Jigoro Kano sempre identificou a prática do judô como atividade que busca essencialmente o benefício mútuo, ou seja, uma prática de inclusão e de bem-estar da comunidade envolvida.

Referências Bibliográficas
  • Borba-Pinheiro, C. J. ; CARVALHO, M. C. G. de A. ; SILVA, N. S. L. da ; DRIGO, A. J. ; Bezerra, J. C. P. ; DANTAS, E. H. M. . Bone density, balance and quality of life of postmenopausal women taking alendronate participating in different physical activity programs. Therapeutic Advances in Musculoskeletal Disease, v. 2, p. 175-185, 2010.
  • BRASIL, D.O.U. – Lei Federal nº 9.615/98 de 24 de março de 1998 – Institui Normas Gerais sobre o Desporto e dá outras providências, 1998.
  • BRASIL, Ministério da Saúde. Portaria Ministerial de Saúde nº154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Diário Oficial da União. Brasília, 2008. (Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Portaria_N_154_GMMS.pdf Acessado em 20 de junho de 2011).
NEPEF – Grupo de Estudos na área de Lutas e Formação Profissional em Educação Física da Unesp – Rio Claro (SP) – Composto por Dr. Alexandre Janota Digo, Anderson Dias de Lima (Esp) e Reinaldo Naia Cavazani (Mdo).